Postagens

Mostrando postagens de junho, 2023

Bicicleta

  Sonhava muito em ter uma bicicleta. A filha do vendeiro, tinha ganhado de presente uma bicicleta modelo Brisa, cor de rosa. Num dia pela manhã, viu   quando enfeitaram a bicicleta com balões em tons de rosa. A menina, loira como uma paquita da Xuxa, subiu na bicicleta e foi empurrada cuidadosamente. Teve inveja, além de não poder sonhar em ser paquita, por causa de sua cor e dos cabelos curtos, sabia ser impossível ter uma bicicleta, bicicletas eram muito caras e   sua mãe não podia comprar, nem mesmo uma de segunda mão, recebia apenas meio salário do fundo rural, mal dava para comprar comida, viviam com muita dificuldade. A bicicleta era um sonho inatingível. E foi em sonhos que muitas vezes pedalou sua própria bicicleta, empurrada ou não, atravessando caminhos, cortando por entre canteiros. Caía da cama. Foi então que ela e o irmão passaram a planejar a construção de uma bicicleta usando velhos galhos e tijolos. Passaram dias nesse projeto no fundo do quintal, perto d...

No espelho

  Certo dia ouvi a história que se segue: Oxum, a deusa de pele negra reluzente, estava triste. Apesar de ser a deusa da beleza, que se veste de amarelo, que atraí homens e deuses com sua graça, seu mel, com suas pulseiras douradas e sua dança dos véus, ela não sentia vista. A casa de Oxum estava sempre cheia de pessoas que comiam, bebiam e festejavam, porém ela não se sentia reconhecida. Então procurou Exu, o deus da comunicação e confidenciou a ele seu estado de espírito, então Exu perguntou: Oxum, onde estão seus abebés? Oxum respondeu: Eu dei os meus abebês. Exu então retorquiu: Essa é a causa de sua tristeza, você não mais consegue se ver. Volte, recupere seus abebés e se mire, se enxergue tal como é. Então, Oxum buscou seus espelhos   e se olhou, ela se viu, reconheceu seu valor e sua alegria voltou. Essa história me calou fundo, pensei o quanto nós mulheres negras somos levadas    a não nos enxergarmos, interiorizamos o desamor a que somos submetidas durante t...

Marias do sertão

  Passou a mão na rodilha e na lata, calçou as sandálias e desceu a trilha da cacimba, de longe ainda ouve os gritos dos meninos brincando ao redor da casa. O sol castigando, a terra seca ganha tons avermelhados, despida de verde. É raro vento. Um cheiro de capim gordura no ar, o pouco que restou da fome do gado. É setembro, se Deus não tiver dó, não sei o que será de nós aqui, pensa, enquanto desce o morro. Carece de fazer uma novena, com procissão, carregar umas pedras até o pé do cruzeiro pra ver se chove. Dia de São José sempre chovia, mas nesse ano não caiu uma gota.   O povo já está arando terra, dá pra ver de longe. Sente no ar o cheiro de assa-peixe, a   planta seca solta um cheiro bom. De dia é quente, de noite gela. É preciso se aconchegar bem com as crianças no colchão de palhas de bananeira. Quando se aproxima da cacimba, já sente o frescor da água escondida entre as bananeiras. Tira as lascas de aroeira que cobrem a abertura. A água cada dia baixa mais, vai e...